
Tinha uma cama de ferro com docel, uma comoda de jacarandá, uma janela que dava para os fundos da propriedade. Dali ela podia ver o terreiro de café, o engenho e mais além a cenzala onde os escravos dormiam. Naquela noite, Mariana não conseguiu dormir. A lua cheia iluminava o quarto com uma luz prateada que desenhava sombras nas paredes. Por volta das 10 horas, ela ouviu passos pesados no corredor.
A porta da biblioteca se abriu e fechou. Vozes masculinas conversavam em tom baixo. Reconheceu a voz do pai e a do padre Antônio, o vigário da paróquia local. O padre vinha fazenda uma vez por mês para celebrar missa na capela particular do coronel. Mas aquela não era a época de missa. As vozes subiram de volume. Mariana conseguia distinguir palavras soltas através da parede.
Solução, providência divina, ninguém precisa saber. O padre saiu meia hora depois. Mariana ouviu os cascos do cavalo se afastando pela estrada de terra. O silêncio voltou à casa grande, pesado como chumbo. Na manhã seguinte, o sol mau havia nascido quando Rosa entrou no quarto de Mariana. Trazia uma bacia com água morna e panos limpos.
Ajudou-a a se lavar e vestir. Movimentos rotineiros executados em silêncio respeitoso. Mas algo na Mucama estava diferente. Suas mãos tremiam levemente e ela evitava o olhar de Mariana. O coronel mandou chamá-la à biblioteca às 8 horas. Rosa empurrou a cadeira pelo corredor de tábuas enceradas. A biblioteca cheirava fumaça de xuto e couro velho. Prateleiras de livros cobriam três paredes.
Na quarta, uma janela grande oferecia vista para as plantações. O coronel estava sentado atrás da escrivaninha de Mogno maciço. Não levantou os olhos dos papéis quando Mariana entrou. Rosa posicionou a cadeira diante da mesa e saiu, fechando a porta atrás de si.
O relógio de pêndulo na parede marcou 8:15 antes que o coronel finalmente falasse: “Tomei uma decisão sobre seu futuro.” Mariana manteve as mãos cruzadas no colo. Esperou. Sete homens recusaram seu pedido de casamento. Sete. Ele ergueu os olhos e Mariana viu neles algo que nunca havia visto antes. Não raiva, mas uma frieza calculada que era infinitamente pior. O nome desta família está manchado.
Cada recusa é uma humilhação pública. Cada conversa na cidade, cada olhar de pena, cada sussurro nas costas. Ele se levantou, caminhou até a janela. O sol da manhã projetava sua silhueta contra a luz. Você vai se casar? Mariana sentiu o coração acelerar. Com quem? Com Gabriel. O silêncio que se seguiu foi absoluto.
Nem o tic-tacque do relógio parecia penetrá-lo. Ative o sininho das notificações para não perder nenhum detalhe desta história impressionante. Mariana finalmente encontrou a voz, embora saísse como um sussurro rouco. Ele é um escravo e você é uma leijada. O coronel virou-se para encará-la.
Nenhum homem livre a quer, mas Gabriel não tem escolha. Ele obedecerá porque é minha propriedade. Pai, a cerimônia será realizada amanhã à noite. O padre Antônio concordou em oficializar a união sob uma condição que permaneça em segredo. Aos olhos do mundo, você simplesmente ficará morando na fazenda isolada. Ninguém além das pessoas desta propriedade saberá que você está casada com um escravo. Mariana sentiu náuseia subir pela garganta.
E ele o que pensa disso? O que ele pensa não importa. O coronel retornou à escrivaninha, sentou-se. Gabriel me serve há 15 anos. Nunca desobedeceu uma ordem. Não começará agora. O senhor não pode fazer isso. Posso e farei. Ele voltou a baixar os olhos para os papéis. Você morará na casa do feitor, ao lado da senzala. Gabriel continuará trabalhando normalmente. À noite cumprirá seus deveres de marido.
As palavras saíram da boca do coronel com a mesma frieza com que discutiria a compra de gado. Mariana sentiu lágrimas queimarem seus olhos, mas não permitiu que caíssem. Está dispensada. Mariana não se moveu. Eu disse que está dispensada. Rosa deve ter estado esperando do lado de fora porque a porta se abriu imediatamente.
A Mucama empurrou a cadeira para fora da biblioteca sem dizer palavra. No corredor, longe dos ouvidos do coronel, Rosa curvou-se e sussurrou no ouvido de Mariana. Gabriel é bom homem, sinzinha, coração grande. O Senhor escolheu ele porque sabe disso. Mas Mariana não conseguia pensar na bondade de ninguém.
Conseguia pensar apenas que em 24 horas seria esposa de um homem que não conhecia, que não escolhera, que nem sequer fora consultado sobre se aquiria. A capela ficava no extremo oeste da propriedade, uma construção simples de pedra e madeira com capacidade para 40 pessoas. O coronel a havia mandado erguer 10 anos atrás, depois que a esposa morreu de febre.
Dizia que era para honrar a memória dela, mas todos sabiam que era pura vaidade. Ter capela própria era símbolo de prestígio entre os fazendeiros da região. Anoiteceu rapidamente naquela sexta-feira de março. O céu passou de azul para laranja, depois para púrpura, finalmente para negro salpicado de estrelas. Não havia lua. Mariana observou o céu escurecer da janela do quarto, o corpo tenso como corda de violino. Rosa veio buscá-la às 8 horas.
trouxe um vestido branco simples, sem rendas ou bordados, mais apropriado para uma mucama que para uma noiva. Ajudou Mariana a vesti-lo, penteou seus cabelos e prendeu-os com o pente de tartaruga que havia pertencido à mãe dela. “Sinhazinha, tá bonita”, murmurou a Mucama, mas sua voz tremia.
Dois escravos carregaram Mariana até a capela. Não usaram a cadeira de rodas. O caminho de terra era irregular demais. Um deles era jovem, não mais que 16 anos, e seus braços tremiam sob o peso. O outro era mais velho, tinha cicatrizes de chicote nas costas que Mariana podia ver através da camisa rasgada. A capela estava vazia, exceto por quatro pessoas: o coronel, o padre Antônio, Rosa e Gabriel.
Gabriel estava parado diante do altar improvisado, as mãos grandes penduradas ao lado do corpo. Vestia calças de algodão cru e camisa branca, roupas limpas, mas remendadas em vários lugares. Alguém havia tentado pentear seus cabelos crespos, mas alguns cachos teimosos se recusavam a ficar no lugar. Quando Mariana foi depositada numa cadeira próxima ao altar, Gabriel finalmente olhou para ela. Seus olhos se encontraram por 3 segundos.
Naquele breve momento, Mariana viu tudo que precisava ver: resignação, vergonha e algo mais profundo que ela não conseguia nomear. O padre Antônio era um homem corpulento de 50 anos, com papada flácida e mãos sempre úmidas de suor. Falava rápido, ansioso para terminar aquilo e ir embora.
Não havia Bíblia, não havia velas, não havia flores, apenas palavras murmuradas em latim que ecoavam nas paredes de pedra fria. Gabriel Antônio da Silva: “O padre usou o sobrenome do coronel, como era costume com os escravos da fazenda. Você aceita Mariana Clara Ferreira da Silva como sua esposa para amá-la e respeitá-la até que a morte o separe?” Gabriel não respondeu imediatamente. O silêncio se estendeu.
O coronel deu um passo à frente e Gabriel finalmente falou: “Aceito”. Sua voz era grave, rouca, como se há muito tempo não fosse usada para mais que respostas monossilábicas. Mariana Clara Ferreira da Silva: “Você aceita Gabriel Antônio da Silva como seu esposo para amá-lo e respeitá-lo até que a morte o separe?” Mariana fechou os olhos, pensou em todas as escolhas que haviam trazido até ali.
Nascer com pernas que não funcionavam, ser filha de um homem amargurado, existir num mundo que media o valor das mulheres pela capacidade de servir aos homens. Não havia escolha real, nunca havia havido. Aceito. O padre Antônio fez o sinal da cruz apressadamente. Pelo poder que me foi conferido pela Santa Igreja, eu declaro marido e mulher. Que Deus tenha misericórdia de suas almas.
Não houve beijo, não houve abraço. O coronel saiu primeiro sem olhar para trás. O padre o seguiu quase correndo. Rosa permaneceu tempo suficiente para sussurrar algo no ouvido de Gabriel. Mariana não conseguiu ouvir o quê? Antes de desaparecer na noite. Mariana e Gabriel ficaram sozinhos na capela.
Ele se aproximou devagar, como se temesse assustá-la, curvou-se, passou os braços sobu. Desta vez, Mariana pôde sentir o coração dele batendo forte contra o peito. Ele tremia. Um homem com o dobro do seu tamanho, com força suficiente para derrubar uma árvore, tremia ao carregá-la. “Vou levar a senhora para casa”, ele disse baixinho. A casa do feitor ficava 200 m da cenzala.
Era uma construção pequena de pau a pique, com três cômodos, sala, quarto e cozinha. O feitor anterior havia morrido de malária dois meses antes e a casa estava vazia desde então. O coronel havia mandado limpá-la e colocar uma cama, uma mesa, duas cadeiras. Nada mais. Comente o que você está sentindo agora. Esta história está apenas começando.
Gabriel empurrou a porta com o ombro. Dentro, uma única vela iluminava o quarto. Ele depositou Mariana na cama, um estrado de madeira com colchão de palha, com o mesmo cuidado de antes. Ficou ali parado, sem saber o que fazer. Mariana também não sabia. O silêncio entre eles era denso, carregado de tudo que não podiam dizer.
Finalmente, Gabriel falou: “Eu vou dormir lá fora na sala. A senhora fica com o quarto. Mariana piscou surpresa. O coronel disse que você Eu sei o que ele disse. Gabriel olhou para as próprias mãos. Aquelas mãos enormes capazes de tanta violência e aparentemente de tanta gentileza. Mas eu não vou fazer nada que a senhora não queira. Não importa o que ele ordenou.
Mas se ele descobrir, que descubra. Pela primeira vez, Mariana viu algo além de resignação nos olhos dele. Viu determinação, viu dignidade que nenhuma quantidade de anos em cativeiro havia conseguido destruir completamente. “Por que está fazendo isso?”, ela perguntou. Gabriel permaneceu em silêncio por tanto tempo que Mariana achou que ele não responderia.
Então, porque eu também sei o que é não ter escolha e eu não vou tirar da senhora a única escolha que ela ainda tem. Ele saiu do quarto fechando a porta atrás de si. Mariana ouviu seus passos pesados atravessando a sala, o rangido das tábuas sobo, o silêncio quando ele finalmente se deitou. Ficou acordada por horas, olhando para o teto de madeira, onde sombras dançavam à luz da vela.
Pensou na ironia de estar casada com um homem que mostrava mais respeito por ela em uma hora do que seu próprio pai havia mostrado em 22 anos. Pensou também em como pela primeira vez na vida, alguém havia lhe dado uma escolha. O sol nasceu às 5:30. Mariana acordou com som de movimentos na sala. Levou alguns segundos para lembrar onde estava, porque estava ali. Então, a realidade caiu sobre ela como água fria.
Ela era uma mulher casada agora, esposa de um escravo. A porta do quarto se abriu. Gabriel entrou carregando uma bacia com água e panos limpos. Parou na soleira, como se esperasse permissão para entrar. Bom dia”, ele disse. Sua voz soava ainda mais rouca pela manhã. Mariana notou que seus olhos estavam avermelhados, como se ele também não tivesse dormido.
“Bom dia, Gabriel colocou a bacia numa cadeira ao lado da cama. Rosa mandou isso pra senhora se lavar. Ela disse que vem ajudar daqui a pouco, mas eu pensei, ele hesitou. Pensei que a senhora talvez quisesse privacidade. Mariana assentiu. Gabriel saiu rapidamente fechando a porta. Ela se lavou como podia, movimentos limitados pela paralisia.
Vestiu o mesmo vestido do dia anterior. Não havia trazido outras roupas. Quando terminou, chamou por ele. Gabriel voltou, pegou-a no colo novamente e a levou para a sala. Havia uma cadeira ali agora, uma cadeira comum de madeira. Ele assentou com cuidado.
Na mesa, duas tigelas de mingal fumegante esperavam pão de milho, café preto e forte, comida simples, comida de escravo, mas estava quente e cheirosa. Eu não sabia o que a senhora gosta de comer. Gabriel disse ainda de pé. Então fiz o que eu sei fazer. Você cozinhou? Sim, senhora. Sente-se. Vamos comer juntos. Ele hesitou novamente. Aquela hesitação que Mariana começava a reconhecer como parte fundamental de quem ele era.
Um homem ensinado a vida inteira a não ocupar espaço, a não presumir nada, a sempre esperar permissão. “Por favor”, ela disse mais suavemente. Gabriel sentou-se. Comeram em silêncio. O mingal estava bom, cremoso e adoçado com rapadura. O café era forte demais para o gosto de Mariana, mas ela bebeu sem reclamar.
Depois do café da manhã, Gabriel lavou as tigelas numa bacia do lado de fora. Mariana observou pela janela. Ele se movia com economia de gestos, sem pressa, mas sem desperdício de movimento. Tudo nele falava de eficiência nascida de anos, fazendo o mesmo trabalho repetitivo. Quando voltou, permaneceu na porta. Eu tenho que ir pro eiito agora. Trabalho até o meio-dia. Ele olhou para ela com algo que poderia ser preocupação.
A senhora vai ficar bem sozinha? Vou. Rosa disse que vem ao meio-dia trazer o almoço. Está bem. Mas Gabriel não saiu. Ficou ali claramente querendo dizer algo mais. O que foi? Mariana perguntou. Eu só. Ele engoliu em seco. Eu só queria que a senhora soubesse que eu não queria que as coisas fossem assim. Não escolhi isso mais do que a senhora escolheu. Eu sei.
Mas já que estamos aqui, ele endireitou os ombros e Mariana viu naquele gesto um orgulho que o cativeiro não havia conseguido apagar completamente. Vou fazer o melhor que eu puder. Vou cuidar da senhora. Isso eu prometo. Antes que Mariana pudesse responder, ele saiu. Os dias seguintes estabeleceram um padrão.
Gabriel acordava antes do amanhecer, preparava café da manhã, ajudava Mariana a se lavar e vestir. Então ia para as plantações. Rosa vinha ao meio-dia com almoço. À tarde, Mariana ficava sozinha. Ao anoitecer, Gabriel voltava, preparava jantar, comiam juntos em silêncio e ele dormia na sala. Eles conversavam pouco. Gabriel não sabia conversar.
Anos de silêncio forçado haviam roubado dele a facilidade com palavras. Mariana também não sabia o que dizer a ele. Que perguntas fazer a um homem que era propriedade de seu pai? Que histórias compartilhar com alguém que não havia escolhido estar ali? Mas no quinto dia, algo mudou. Era tarde da noite. Mariana havia acordado com sede. Chamou por Gabriel, mas ele não respondeu.
Ouviu ruídos estranhos. vindos da sala. Sons abafados irregulares. Gabriel, silêncio. Então, finalmente, sua voz rouca. Sim, senhora. Você está bem? Estou sim, senhora. Mas algo no tom dele estava errado. Mariana esperou alguns minutos, então chamou novamente. Pode vir aqui, por favor. Ele apareceu na porta.